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Fotos: Fer César

 

Entro numa sala apertada de um prédio antigo num anexo do Hospital do Trabalhador. Dr. Renato Freitas me recebe e pede que eu me sente ao seu lado. Um pouco mais atrás vejo jovens com jaleco branco, com os olhos atentos, indicando que algo importante vai come­çar ali naquela sexta-feira nublada. Estamos no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (CAIF), e com um sorriso discreto ele pede para que uma assistente chame o primeiro paciente. Confesso que não tenho ideia de quantas pessoas entraram na sequência. Depois de ver a primeira criança com o rosto paralisado do lado direito e com uma expressão feliz por estar sendo observada pelo médico, não parei mais de pensar na minha vida e nas crianças perfeitas que conheço. Pensei o quão difícil pode ser a vida de alguém que convive com esse problema. Em um mundo pautado pelo culto à beleza, quem passa por aquela sala quer apenas ter funções perfeitas no rosto e uma aparência minimamente “normal”.

Despeço-me e passo pelos corredores meio sem saber para onde olhar. Inúmeras famílias aguardam atendimento. São feitas mais de 100 cirurgias por mês, a maioria delas de fissura labial e má-formação palatal. Ainda tenho tempo de conhecer a Luisa, uma bebê de três meses que passaria por uma cirurgia nos próximos dias. Certamente essa será mais uma das pessoas que entrará na vida do médico que tem orgulho em dizer que há mais de 20 anos acompanha pacientes regularmente. São pessoas que operou quando eram bebês e que hoje trazem seus filhos para ele conhecer.

Fascinado pela estética e cuidadoso nas palavras, Dr. Re­nato fala nesta entrevista sobre cirurgia plástica, trabalho voluntário e sobre os perigos dos procedimentos estéticos feitos sem os devidos cuidados.

 

Como sua carreira se direcionou para a reconstrução?

Durante a minha formação acabei tendo contato com crianças do lábio leporino, que era algo que a gente não via aqui em Curitiba. No começo da residência em Cirurgia Plástica na USP, a gente passava em várias áreas e quando eu conheci a fissura, achei aquilo apaixonante. Eu me tor­nei voluntário daquele estágio e quando sobrava um tempo eu ficava por lá. Quando terminei eu decidi fazer um ano a mais de treinamento em cirurgia craniofacial.

 

E o trabalho no Caif?

Quando voltei para Curitiba, nasceu um filho de um amigo com fissura e ele me disse que havia um centro especializa­do nesse tipo de atendimento. Fui conversar com o Dr. Lau­ro Consentino Filho, fundador do CAIF, que me abriu as portas, e estou aqui há 20 anos. O CAIF completa 25 anos em 2017 e hoje atende pessoas de todo o Paraná pelo SUS.

 

Gente vida real nesse tempo todo, lembra-se de algum caso marcante?

Existem muitos, mas um dos mais marcantes foi o primei­ro, a paciente Arilda, que precisava fazer alongamento mandibular. Era uma deformidade grave e era exatamente minha tese de mestrado. Eu vim para fazer a cirurgia dela e depois comecei a operar outras coisas. Ela tinha 15anos, atualmente está com 35 e a acompanho até hoje.

 

E sua experiência com o trabalho volun­tário?

Em 1999 fui convidado para rodar o mundo com a Ope­ration Smile para operar crianças com lábio leporino. Aquilo é apaixonante e a última vez que contei estava com mais de 50 missões. No mês que vem estou indo para o Paraguai. Já fui para a Jordânia, China, Nicarágua, Marro­cos, Quênia, Etiópia, Bolívia e Equador. No Brasil já foram mais de 30.

 

Qual o critério de atendimento?

Geralmente o trabalho é feito em países que não têm uma saúde pública adequada. São muitos pacientes, como em Fortaleza, onde há mais de 600 pessoas numa lista de espe­ra. Você opera 20 por mês e nascem 30, 40 crianças com o problema. Ou seja, nunca consegue resolver. Aí a missão é organizada e em uma semana são operadas 110 crianças. São muitos voluntários, é um projeto realmente muito es­pecial.

 

Qual o perfil dos atendimentos?

Na maioria das vezes a gente viaja para operar crianças com má-formação — lábio e palato — mas em alguns luga­res específicos acontecem outros tipos de problema. Uma vez fui operar no Quênia e por causa da altitude faz muito frio e eles esquentam as ocas com álcool. Com isso, muitas vezes as ocas pegam fogo por acidente e há um alto inci­dente de queimaduras em crianças. Para se ter uma ideia, 50% da missão lá foi tratar queimados.

 

Como se divide o seu trabalho?

No Hospital das Clínicas trabalho muito com reconstrução de mama, sequelas de queimaduras e outras deformidades. No CAIF corrijo deformidades craniofaciais. No consultó­rio, metade são cirurgias reparadoras e metade são estéti­cas mesmo. Uma coisa não exclui a outra, mas a reparadora requer mais tempo de treinamento e provavelmente em breve vou fazer só reparadora.

 

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Por quê?

Hoje, há 270 cirurgiões plásticos no Paraná, destes apenas dois fazem craniofacial. Mesmo lábio leporino são apenas seis.

 

O atendimento no Caif é bastante intenso, não?

Eu venho para cá 13h30 e é para ir até as 17h, mas ficamos até as 18h30 porque é algo muito prazeroso. Acompanho esses pacientes por muitos anos e não tem como não se en­volver com as histórias deles. Tem uma paciente que ope­rei o nariz na semana passada que está com 18 anos e eu operei o lábio dela quando era bebê. Eu falei que qualquer dia estou indo no casamento dela e é verdade porque eu conheço a família inteira, a peguei pequenininha no colo e a acompanho todo ano.

 

Isso deve ser muito recompensador.

Sim, e tem casos que não são nada extraordinários no senti­do cirúrgico, mas o grau de satisfação que você traz é mui­to grande. No meu Facebook quase 50% dos meus amigos são pacientes e é muito bacana ver quando colocam fotos dizendo que foram operados e os comentários das pesso­as. Isso vai muito além de dinheiro, ver a felicidade do que você pode proporcionar.

 

Como professor, como é sua contribui­ção?

Muita gente tem a ideia errônea de que cirurgia plástica é só cirurgia estética. Na primeira aula que eu dou faço ques­tão de mostrar que cirurgia plástica não é só colocar próte­ses. Existem as questões de reconstrução, de queimaduras e outras cirurgias muito complexas que são os cirurgiões plásticos que fazem.

 

Como presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica no Paraná, qual sua maior preocupação no momento?

Com certeza sobre a falta de definição do que é ato médico. Porque a Lei do Ato Médico acabou sendo aprovada com algumas ressalvas, e muitos Conselhos de outras especiali­dades têm dado pareceres que infligem esta Lei. Isso está se tornando um problema de saúde pública. Em Cascavel, um farmacêutico foi fazer um peeling na perna de uma pessoa e ela foi internada na UTI por conta de complicações.

 

Quais os procedimentos mais comuns rea­lizados por não médicos?

Os que envolvem estética. Ninguém está preocupado em querer tratar câncer. Só querem fazer botox, preenchimen­to, peeling. Pouca gente está pensando em saúde.

 

E quais são os riscos para a sociedade?

Estão acontecendo muitos problemas e muitas sequelas em pacientes. Um exemplo clássico: farmacêuticos estão tra­tando e prescrevendo para diabetes e essa não é a função deles. Eu, que fiz Medicina, não me sinto capacitado para tratar diabetes, porque não é a minha especialidade. E no campo da estética acontece a mesma coisa: muitos profis­sionais não estão preparados e isto é muito arriscado.

 

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Durante um trabalho no Quênia, em 2005

 

E entre os médicos, esses desvios não acontecem?

Sim, na área médica funciona da mesma maneira, porque a questão é financeira. Poucos querem fazer cirurgia reconstrutora, como tratar de pacientes com lábio le­porino. A maioria dos profissionais prefere prótese e lipoaspiração. Sem falar que existem outras especiali­dades médicas fazendo cirurgia plástica. E quando não dá certo tem que chamar o cirurgião plástico.

 

O que a sociedade faz nesse sentido?

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica está traba­lhando muito forte, tentando evitar que pessoas não habilitadas façam esses procedimentos. Quer ser ci­rurgião plástico, não tem problema. Vai treinar e vai trabalhar. O que não dá é para atender uma área ape­nas, porque quando tem problema aí manda para um cirurgião plástico tratar. É assim todos os dias. No Hos­pital das Clínicas eu recebo muitos pacientes assim.

 

Quais os cuidados o paciente deve tomar?

Hoje qualquer pessoa que vá se submeter a uma cirur­gia plástica, seja estética ou reparadora, tem que ver quem é o especialista. Tem que entrar no Conselho Regional de Medicina ou na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e primeiramente validar se essa pes­soa tem formação adequada. Vale lembrar que para se tornar cirurgião plástico a pessoa faz, além dos seis anos de Medicina, mais dois anos de cirurgia geral e mais três de cirurgia plástica. Ao total são onze anos para você se formar.

 

Vale pedir indicação?

Com certeza. O melhor é perguntar para quem já operou e como foi o resultado. Hoje existe um grande problema que se chama Facebook. Muita gente está escolhendo médico por indicações de não saber exa­tamente quem é a pessoa que está indicando aquele profissional. Procure a opinião de uma amiga, que é alguém que você conhece e não alguém virtual.

 

Um centro de referência internacional

O Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (CAIF), é uma Unidade da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná e conta com uma importante parceria com a Associação de Reabili­tação e Promoção Social ao Fissurado Labiopala­tal – AFISSUR. O trabalho conjunto entre o órgão público e a entidade filantrópica levou o serviço a ser reconhecido nacional e internacionalmente. O CAIF/AFISSUR é considerado um Centro de Refe­rência no tratamento das deformidades congêni­tas de face e/ou de crânio (entre elas as fissuras labiopalatinas) e profissionais de diversas regiões do Brasil e de outros países solicitam treinamento com a equipe.

 

“Existe muito preconceito com quem tem má­-formação de face e/ou de crânio, o que pode im­plicar no isolamento desse indivíduo. É por esse motivo que o trabalho desenvolvido pela nossa equipe vai além das questões físicas e tem a pre­ocupação com os aspectos emocionais, sociais e educacionais, tanto com a criança no âmbito escolar como com o adulto no mercado de tra­balho”, conta o diretor e fundador Dr. Lauro Con­sentino Filho.

 

Conheça mais: caif.saude.pr.gov.br