Confesse, você começou a ler essa matéria só porque viu uma freira fazendo malabarismo com uma bola na cabeça. Se fosse uma foto desta mesma mulher ao lado de crianças num projeto social você passaria adiante porque seria apenas mais uma irmãzinha fazendo o bem.

Em todos os projetos que coordena – e não são poucos – ela encontra formas diferentes de apresentar as necessidades de uma população sofrida que o poder público e a sociedade acostumaram-se a não enxergar.

Desde 1999, quando foi convidada a assumir a coordenação do Centro Social Divina Misericórdia, na Vila Sabará, Irmã Anete é uma especialista em tirar sonhos do papel. Para isso, bate escanteio e cabeceia, mobiliza voluntários, faz amigos e arrecada doações.

Comanda a creche comunitária, olha pelos idosos e encontra tempo para auxiliar na elaboração de projetos para indígenas da região de Guarapuava. Mas a menina dos olhos é o Centro Educacional que atende crianças e jovens com o objetivo de fazer com que eles tenham uma perspectiva de futuro.

A ideia surgir quando Irmã Anete, cansada das  brigas de gangues que culminaram na morte de um jovem, decidiu que era hora de arregaçar as mangas. Conversou com os meninos, ofereceu-se para organizar a “pelada” e aos poucos foi ganhando a confiança deles. Aprendeu a criar projetos e conseguiu bolas e apitos da Secretaria de Esporte e Lazer. Tornou-se a treinadora da escolinha de futebol da praça perto de casa e uniu as gangues rivais em torno de uma mesma bola. O que começou de forma simples e despretensiosa hoje conta com mais de 270 atletas e apoio do Clube Atlético Paranaense. Mas a irmã quer mais e continua equilibrando o orçamento e driblando as dificuldades para manter o projeto com toda a qualidade que suas crianças merecem. Não à toa o brasão do time tem um diamante. “Ele representa que todos precisam apenas de um pouco de carinho, de tempo, de serem lapidados, para enfim brilhar”. Com vocês, Irmã Anete Giordani: mãezona, líder, amiga e craque da solidariedade.

A senhora é “mãe” de muita gente no Sabará. Qual o principal papel de uma mãe nos dias de hoje?

Dar o exemplo. A Psicologia e a Pedagogia mostram que o testemunho dos pais é fundamental para a educação das crianças. No nosso trabalho diário percebemos nitidamente que quando a família tem uma estrutura mais harmoniosa, de diálogo, a criança é diferenciada. Da mesma forma, uma família que tem relações muito truncadas gera uma criança revoltada, insegura.

Qual a maior lição a ser dada às crianças?

Trabalhamos muito por aqui a mística (que é a frase de Lucas 2) de que “Jesus crescia em estatura, sabedoria e graça”. Crescer de forma equilibrada é valorizar a dimensão física, atendendo tudo o que o corpo pede, já que é a sede de todo o restante. Sabedoria é quando você se apropria do conhecimento para ter o discernimento. É saber viver bem, optar pelo que é bom para você. E graça é viver bem a sua espiritualidade. Você percebe nitidamente que o jovem cuja família tem relação com alguma religião tem uma forma diferente de se relacionar com o outro.

 Qual a importância de Deus nesse caminho?

A fé nos dá a certeza de que não estamos sozinhos. O maior presente que a espiritualidade nos dá é a sensação de estarmos protegidos, de sermos carregados no colo pelo Pai. Sem isso, não temos uma base de suportação do dia a dia. E todos vamos viver dias ruins.

As qualidades a gente já percebeu, mas qual o seu maior defeito?

Eu sou muito brava. Com o passar dos anos eu fui mudando, mas o meu temperamento é assim. Claro que eu já trabalhei um pouco isso com terapia, com muitos estudos, com a oração. Inclusive existem várias imagens de uma religiosa. Aquela tonga, bobinha, que não reage. Mas existe outro extremo, que é aquela irmã brava, que dá medo em todo mundo, que judia das criancinhas. Eu procuro ser o mais verdadeira possível, o que eu consegui polir um pouco foi o jeito de dizer.

Mas esse seu jeito parece ter dado certo por aqui…

É, acho que sim. A raiva que eu tenho ao ver algumas situações eu procuro canalizar para as ações que precisam ser feitas. Em alguns momentos, sobretudo nas negociações com a prefeitura, eu vou muito bem preparada e não me calo. Eu nunca vou tomar só um cafezinho com o prefeito.

O que mais a incomoda nestas relações com o poder público?

A hipocrisia. Você ilude o povo com cara de benfeitor. Há aquele discurso de que Curitiba é modelo, que ama as crianças, e aí você vê que uma comunidade como a do Sabará que há 20 anos não recebe uma creche, não tem escolas de Ensino Médio. Aliás, não tem hipocrisia maior que audiência pública aqui em Curitiba. Porque isso é para fazer com que o povo participe das decisões do orçamento. Só que o orçamento já está todo amarrado, todo fechado. Para que fazer audiência pública, então? Eu conheço orçamento participativo de outros Estados, onde as pessoas da comunidade decide onde o dinheiro vai ser gasto. Aqui não é assim…

Caridade é uma palavra muito desgastada. Como a senhora lida com isso?

O objetivo dos trabalhos que eu desenvolvo é garantir o direito de que o outro possa ter uma qualidade de vida digna de um filho de Deus. Temos que acabar como ranso histórico de que para pobre tudo serve. As pessoas entram em contato conosco para enviar roupas rasgadas, brinquedos quebrados e se dão ao direito de definir o que é bom e o que não é para o outro. Precisamos parar de olhar para o pobre como se ele fosse menos pessoa.

Por outro lado quem recebe deve saber valorizar….

Com certeza. Quando cheguei ao Sabará, todos os dias pessoas iam até o Centro de Ação Social e saíam com carrinhos de mão cheios de comida e roupas. Achei que tudo era muito cômodo para ambas as partes e passei a trocar a comida pela presença dos moradores em um círculo de conversas. Quem faz a caridade dessa forma pode se tornar um escravo do ‘eu’, se achando o melhor porque ajuda muita gente. Quem só recebe se torna escravo do próprio comodismo e isso também não é bom negócio.

E qual a melhor maneira de ser solidário?

A visão que nós temos de ser humano é de uma pessoa que tem um potencial enorme, mas as oportunidades são diferentes. O pobre não tem culpa de ter nascido pobre, com esse pai e com essa mãe, mas daqui para frente você tem o poder de decisão. Algumas questões são construídas historicamente e a pobreza é uma delas. Você se conforma que aquela é a sua condição porque seu avô era assim, seu pai era assim, e a gente tenta romper com essas coisas. Convido nossos jovens a tentar não reproduzir os modelos que existem por aí.

É possível mudar a realidade?

Acredito que sim, mas antes é preciso mudar alguns combinados. Precisamos dar oportunidade para que principalmente as crianças de famílias mais abastadas possam ter relações com pessoas que não têm dinheiro. As crianças de classe média e alta, por exemplo, são colocadas numa redoma e não têm a oportunidade de ver outras realidades. Quando eu trabalhava no Colégio Sagrado eu as levava para conhecer realidades como esta do Sabará e do presídio feminino. Com essa experiência, as alunas entendiam que os caminhos daquela outra pessoa foram outros, na maioria das vezes por falta de oportunidade. E começavam a ver o próximo sem rótulos.

Como assim?

Qual é o rótulo que alguém que é de uma família rica coloca no pobre? De que ele é perigoso, de que é ladrão. O simples fato de ter nascido pobre já estigmatiza como um ser humano inferior. Nosso papel é criar pontes sobre esse rio. Quem está de um lado tem uma visão muito equivocada de quem está do outro.